sexta-feira, 29 de abril de 2011

O além da poética

Ouvira naquele momento algo de estrondoso soar pelos corredores de gesso e pelo estremecer do estrado de madeira da antiga cama. Tão antiga quanto os seus condôminos
e seus costumes de dormir abraçados com uma luzinha de abajur acesa e um radinho ligado à extrema ponta do travesseiro que dividiam, num volume quase imperceptível aos ouvidos caninos de seu pequeno filho adotivo de orelhas de abano. Olhou para o lado na esperança de encontrar a sua Senhora acordada para indicar-lhe o que de fato acontecia
essa surdez estarrecedora e ao mesmo tempo serena, que ninguém mais conhecera, nem mesmo ele, com os seus tantos anos de paciência esgotada, pele límpida e com ainda os olhos atentos de menino granjeiro. Naquele momento sofrera um terrível ataque - a boca em chamas, a sensação no peito que nunca mais sentira, os dedos trêmulos, rígidos e energéticos, a levitação - nos seus últimos segundos de vida. Morrera do coração, após uma última batida de inpiração. Sabendo o que de fato acontecia. Mas sem esperar que fosse algo tão poético.