terça-feira, 30 de outubro de 2012

conserva

Acabei de passar pela "Cartilha" do João Lima, seu primeiro livro de poemas lançado pela Ocho/2. Lembrei de uma velha situação, de uma professora velha que ensinava uma tabuada velha e decorada: "para que nos servirá a tabuada tia? Para aprendermos a jogar fora o nosso apego aos números." Não me lembro bem de onde eu tirei esta história, mas se não me falha a memória alguma coisa parecida eu aprendi com os melhores poetas do brasil: CDA e Manoel de Barros. É na infância que o nosso mundo cresce, mas continua pequenino para caber dentro de nós. E a poesia? É brincadeira da gente grande que faz do papel o seu parque de diversão.

Assim como "Dobradura" de Alice Sant'anna, a "Cartilha" de João pede a mão do leitor com carinho para atravessar a rua. Uma rua infinita que fica na memória, como o último verão na casa de praia, como a primeira vez que andamos numa bicicleta sem rodinhas e como deveriam ser todas as ruas do mundo.

.

tão fácil transpor
uma fronteira

a verdade é que
não há fronteiras

.

Rua dois de fevereiro

E eu que pensava que o mundo
era pequeno demais e o conhecia
como a palma da minha mão
só porque minha rua - a minha
antiga rua de macadame -
não tinha saída

Pois o meu desejo secreto de menino
era mesmo que nenhuma rua
no mundo tivesse fim.

.

achou tão bucólico
o que escrevi

e sem que eu esperasse
olhou par amim

me senti mais velho
de repente

.

Epígrafe

sempre achei que os livros
fossem feitos de terra e
as palavras
sementes.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

man die


quantas cores cabem entre um olhar e outro?

havia ali

hawaii
how? why?
algo que os primitivos
chamariam de atração
e os homens modernos chamam de paixão

os astros do teu rosto

me dizem algo
(pelo nome dá pra perceber
um expressão que talvez eu saiba
mas finjo que não sei)

apesar da causa puxada o gato

esse mesmo  homem-cão
que acostumou-se a morrer por aí
não esperava pelo tiro certeiro gatilho
acionado pela lua minguante de seus lábios

o homem com uma mão no peito
& a outra na genitália
sabe do risco que corre em ser praticante
das artes marcianas
sufocado pelo romantismo orgástico
no momento em que seu coração para
e as pálpebras aplaudem

esse seria o quadro perfeito para exposição:
a personificação da alegria.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

16.10.2012

o adeus continua gritando

a pior coisa do mundo é conviver sem você,
com esta casa que continua com você.

.

(home, 10.10.12)
.

um bilhete

imagine que nós fossemos um
dessa vez, agora é real, um
que não se parece com dois
mas vale cada centavo que acumulamos
feito um porquinho
todos esses anos

não quero pensar num fim
prefiro cinema em casa
em que você se sente bem e sempre acomodado
por não fazer o dever de casa
o zero nos espreitava calado

o amor, que você já sabe, é moleque
precisa do dinheiro para comprar uma bala
para comprar um parque de diversão, um pirulito
que voa depois de chupado e pouco importa
só para se amostrar pros amigos
da escola, da vida

e quando o ensino acaba
no final do ano já não podemos
mais fugir das escolhas erradas
de ser um adulto por isso
e ai nos damos conta que a conta é alta

e que quebramos
feito um porquinho
todos esses anos.

.

(home, 16.10.12)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

nem tão parecido assim

E eu continuou no esquema do "se reconheça num amigo seu" e no "tudo que é bom deve ser copiado e colado". No mais, Nada é de nada, tudo é de todos. A geladeira está aí para isso, para provar que nada é algo totalmente compartilhado. Até as choradinhas do nada. E o mais importante é que o papel é a melhor maneira de secar o seu rosto. Secar o rosto com o rosto dos seus amigos. Fica com cadim de cada um. E eu, atualmente, pareço muito com o Luca Argel e o seu livro de poemas "esqueci de fixar o grafite", lançado pela 7Letras.

Tirando o fato de que eu também sou barbudo, magro e toco violão, é, até que eu pareço com ele sim. Alguns já me disseram. Numa lógica rápida aristotélica, seriamos, eu, Clone e Luca, como um único zigoto triplicado de forma univitelina. Que legal! E eu me orgulharia porque eu queria ter algum dos nomes que ele escolhe para os seus poemas (Os melhores nomes que um poema poderia receber): "ficar em pé numa cadeira com rodinhas", "o dia em que não furei mais meus pés nos grampos da rocama", "aquele dia em que você abre a geladeira dá de cara com um saquinho de couve e da uma choradinha" e " ainda sonho em lembrar o nome daquela banda daquele clipe ótimo". É tão bão que chega a dar raiva.

Luca Argel é a voz do inconsciente. Ele escreve num tom baixinho, quase sussurrando numa timidez convicta de que para se ouvir poesia é preciso ouvidos surdos. O surdo que não fala, porque escrever concentrado na capacidade de se ouvir internamente é o mesmo que escrever falando para o interno de todos. E eu até adoro a ideia dos internos, mas não sou tão bão na arte de falar. O que não me deixa tão parecido assim com ele.

Ele e Victor Heringer são para mim, atualmente, pessoas que saberiam se comunicar com todos somente escrevendo, sem precisar gastar uma saliva com as palavras faladas e muitas das vezes cuspidas. São dedos em pessoa. São as coisas se repetindo em clarezas. Repeteco de um filme inédito da sessão da tarde. São pimba na gorduxinha. E aí, aí que eu com ele nem sou tão parecido assim.

meu novo hobby é me arrumar e depois não sair

que tive dois segundos para
desistir
e usei ambos para pensar em desistir
e o restante para pensar na idade da pequena cicatriz
sobre o dorso da sua mão direita
de qual banco de corais
ela descende

pensei que era segunda e era quarta

vamos agora endereçar papéis
a uma placa de carro
boletins domésticos
não fiz cópia da chave
dormirei hoje com uma farpa sob cada unha
e as pálpebras apresentarão amanhã claro sinais de
arrombamento

repito
registrar o óbvio
faz parte do trabalho


estragando tudo desde 1987

sim eu sei que são apenas lâmpadas coloridas no chão
mas talvez você queira ver isso
bolas de vidro sem o futuro dentro
eu atravessando as ruas muito melhor
sem você ao me lado
e mais do que as lâmpadas
isso eu queria mesmo que você visse

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O natural de um defensor de causas perdidas

Publicamente, devo confessar um orgulho: apesar d'eu, regularmente, estar publicando aqui alguns comentários inapropriados, opiniões desastrosas e explicações desqualificadas, e, na grande maioria das vezes, a respeito de obras recém lançadas de amigos recém reconhecidos, não me interessa se, aos consentimentos alheios, esta prática venha a se tornar uma "pagação de pau" por interesses ou, para ser mais humilde, por uma causa nobre de estar "prestando homenagens" aos que, por influência ou afluência, compartilham dos mesmos medos e equívocos que eu. É natural que o homem defenda sua causa, sua família, sua vida, seus argumentos e teses. E, tão natural quanto isso, que homens criem círculos, redes sociais, fraternais, religiosas ou de politicagem (na minha opinião, tudo que é referente a política, incluindo aí a da "boa vizinhança" também) para se proteger do vazio que é não pertencer a lugar nenhum. Odeio politicagem, mas, como a minha namorada costuma me lembrar sempre que ela pode, sou um ótimo político. Sim, odiamos nossos defeitos. Nos outros! E se, me permito a praticar esta indevida tarefa de comentarista dos livros dos amigos, confesso também que é por todos os interesses do mundo. E que, orgulhosamente, nenhum deles nunca me retribuiu com nada em troca. Podemos concluir então que o que ocorre afinal é uma pagação sem retorno. Logo, faço isso por puro prazer de escrever tirando do meu próprio bolso o valor de cada livro e de cada amigo. E como diria Garotinho: "Sempre, com o melhor das minhas intenções!"

O negócio é que não há mal nenhum em ser um defensor. Principalmente, quando se trata de um campo, tão minado e disputado quanto um campo de guerra, que é o dos letrados & literários. O bagulho pega fogo, no pior dos trocadilhos. Infelizmente. Mas, lógico, não é só de sangue que se vive um poeta, um escritor e um mestre em letras e literatura. Há também um frescor demasiado de sensibilidade, uma compaixão aos que se reconhecem perdidos neste certame. E, partindo para este caminho, já dei o meu valor àqueles que se enquadram e igualam nesta categoria com os seus brilhantes livros e ideias. E hoje, mais uma vez, volto a repetir a dose com mais um fantástico livro de contos, que acabou de sair pela editora Oito e 1/2, de, logicamente, mais um amigo meu. Digo, neste caso, a pessoa já não é mais minha amiga. Passou a ser uma persona estimulante, um mentor que, sem ser avisado, adquiriu seguidores e que, portanto, não sabe mais o que fazer para tirar aquele bando de trás dele. "O nosso Heath Ledger dos Trópicos", como já bradou Augusto Guimaraens Cavalcanti. O livro se chama "Conversa com leões", do Leonardo Marona.

Já comentei aqui sobre o seu segundo livro de poemas o "l'amore no" que é ótimo mas o comentário ficou uma bosta, como todos os outros, tenho certeza. E ele, na ocasião em que eu apresentei o texto por Email, foi tão simpático que me fez acreditar que estava fazendo a coisa certa. Deu no que deu: depois dele, pratiquei este ato libidinoso com tantos outros e que agora volto a fazê-lo com o seu último livro. Sou cria de sua própria simpatia. Mas antes de me debruçar nos contos, precisarei relembrar e comentar aqui alguns causos e fatos que farão da minha proposta menos esdrúxula. Como quando eu conheci o Marona e a nossa bebedeira no bar da cachaça:

Reconhecimento - Eu conheci o Leo no lançamento do Rafael Sperling (o cara mais animalesco-humano que eu conheço quando escreve. Das suas escritas nascem belos mutantes!) e, do nada, saímos eu, Breno, Leo e Leandro Jardim (o grande herói, o representante e defensor da poesia drummondiana e pessoana)para bebermos em outro local e de lá, do Flamengo, fomos caminhando e cantando, sem o Leandro, como bardos no meio de uma expedição, até a Voluntários da Pátria. Nada mal para nós, jovens sadios e dispostos, se não fosse o fato de estarmos em plena terça-feira perambulando de madrugada a procura da saideira. Foi uma noite alucinante e que se repetiu mais de uma vez.

Personalidades no bar da cachaça - Numa outra ocasião, nos encontramos no bar da cachaça para enchermos os potes e molhar as palavras e, no ponto alto da conversa, falamos dos estudos junguianos a respeito da personalidade e de alguns testes virtuais que se encontram por aí boiando para você identificar a sua. Leo saiu do bar com a tarefa de casa de descobrir a sua personnalité. E, ao nos reencontrarmos num outro dia, vem a declaração decepcionante pelo descobrimento da sua persona: "Cara, eu sai como um defensor de causas perdidas. Que merda!"

Pois bem, "Conversa com leões" já nasceu clássico, do titulo ao acabamento. Com duas formatações diferente: uma elaborada pela editora, em muitos exemplares que, me perdoem os responsáveis, não me recordo direito e outra, com somente vinte exemplares, com um acabamento fora do convencional: tem a danada da capa dura, num tecido vinho trançado e com um recorte no meio de uma pintura elaborada pelo próprio artesão do livro, que é de Curitiba. O livro nasceu com cara de enciclopédia. E o Marona sabe que um livro precisa se disfarçar de uma coisa muito maior que ele, e que nós, para poder seguir adiante. Que é preciso lutar pelos livros, atuando numa livraria tradicional e opinando sempre que pudermos sobre a banalidade dos livros nus que contam segredos já ultrapassados, para que um engravatado, com uma sacola cheia de livros que, ele diz: " são todos para a minha filha. Ela quer ser escritora", ou a madame que quer um valor para a sua vida desgastada, mude de opinião e saia de lá com "falsas" enciclopédias. Ou antes disso, ser a pessoa errada mas ser escolhida para uma entrevista de emprego em grupo, com outras pessoas desajeitadas, entre suores, odores e gambitos mancos, que não saberão sequer o que elas estão fazendo ali. Ser um criminoso que distribui os livros do amigos por debaixo dos panos e diz com o peito estufado de orgulho: "Somos as palavras difíceis no fim de frases vagas. Somos aquilo que deu errado em nós. É preciso disso para se continuar vivendo". Ou, para resumir logo o assunto: um defensor de causas perdidas.

Para quem conhece Leonardo Marona, sabe que ele é capaz de tudo. De frequentar vernissages decadentes e de luxo, de conhecer uma finlandesa fascinada por baratas, de patinar domingo a noite no calçadão do Arpoador só para não ser um chato, de sentir muito pela morte de Boris Yeltsin e de presenciar de perto, do crescimento ao ato solucionador de um suicídio, a vida de um dos maiores escritores americano de todos os tempos: Ernest Hemingway. Até, e principalmente, de conversar com leões. E quando ele começa um conto, ele narra com tanto sentimento e honestidade, que se é possível ouvi-lo, com a mesma tonicidade das palavras, criando pequenas armadilhas poéticas, verdadeiros buracos onde se escondem pequenos baús de tesouros poéticos. Leo é um homem de discurso, portanto, é um homem sentimental que acredita que "na raiva somos honestos, e apenas. Acontece que, quando somos honestos - vejam que contraditório - somos em demasia. É o que nos dizem com os olhos: 'São em demasia'. Ser em demasia é uma depravação, quase uma apropriação indevida, um luxo adquirido por um assassinato a facadas. Endente-se, portanto, que ser honesto é uma depravação."

No livro, somos obrigados a nos defrontar com alguns leões. Mingus na sua época pouco sadia com as drogas, mas no seu período mais fértil. Dylan Thomas e seus últimos instantes numa mesa de bar. Artistas e pessoas que, sem sorte nenhuma no amor, não querem e se recusam a "admitir que a vida seja mera casualidade" e nem descer do tamanco para "uma relação de troca com o mundo, uma relação física de troca com o mundo, é a única maneira de agradecermos a ele, ao mundo, e reconhecermos ao mesmo tempo a sua inaptidão com o tempo."

Com tantos rugidos, gritos e sussurros, "Conversa com leões" pode ser considerado também como a representação arquetípica junguiana de que no mundo artístico, principalmente o literário, de letrados, mestres e doutores, é uma grande Savana onde quem reina mesmo é o leão que tiver a maior juba. E quem é inferior, na magnitude ou na inexperiência, precisa sobreviver em pequenos bandos. Defendendo e lutando pelos seus. E Leo, neste ponto, é ainda otimista: " Alguém aceita salvar um caso perdido?"

.

rastros do êxodo

FRISSON – SP – (1)

no fundo escrever é o nosso principal sexo, a perfeita comunhão com o corpo.
mas, sem estragá-la com os excessos da pele,
teremos parâmetro suficiente para reconhecermos
a sua perfeição?

FRISSON – SP – (2)

Nossa primeira discussão mais séria foi acerca de um pedaço de pão e restos de um queijo ruim e caro. Você come bastante, acabou com tudo, ainda bem que sobraram esses farelos. Emburrou-se e fechou a cara durante toda a manhã. Nada se quebrou, embora exista agora um copo bem na beirada da mesa. Nunca mais tentar ser engraçado. Quando sentir vontade de sê-lo, ser sério. Aí está a origem do riso. Ela tem mil tipos de riso, e não precisa pensar em nada engraçado para emitir nenhum deles. Projeto ambicioso: tentar catalogar as variações de riso. Ser sério e tentar desvendá-los. Sem pressa. Nunca mais escrever nada que não leve ao desespero qualquer homem apressado. Isto é uma frase de outra pessoa, agora é minha. No fim me angustiou pensar que eu não era capaz de reconhecer minha própria graça. Desejo de voltar a dormir imediatamente. Mas ela dorme, ronca baixinho, é incrível que uma pessoa tão pequenina ronque, mesmo que baixinho. Acordar depois dela seria, portanto, uma compensação ilustrativa. Pensar é o preço de não saber. Lembrar disso no fim do dia. Não dançaremos hoje à noite.

FRISSON – SP – (3)

São Paulo é uma cidade onde os bancos se parecem com lanchonetes e as lanchonetes se parecem com bancos. E onde uma loja Marisa se parece com um banco que acabou de se tornar uma lanchonete. Devemos estar mesmo nos entendendo bem: paramos horas ao sol para observar uma senhora de uns 90 anos toda de branco e com um lenço azul claro que estava em pé com uma bolsa preta esperando algo na esquina justo em frente às Oficinas MC. Duas pessoas observando uma senhora, o que ela fará, o que estará a senhora esperando do movimento do mundo naquele exato momento, aquilo era a realidade suspendendo-se diante de nossos olhos recém chorados. A velha encostou-se ao automóvel esporte vermelho e eu jurava que estava prestes a entrar numa girada sinuosa de corpo, soltar o lenço na cabeça branca e sair com o lenço esvoaçante arrancando com o automóvel esporte vermelho. Sua filha chegou – mas quem disse que era a filha afinal? – minutos depois, abriu o carro, a senhorinha entrou. Mas tínhamos sido crianças por quase dez minutos.

FRISSON – SP – (4)

Em nosso último – ou terá sido o primeiro? – dia havia finalmente começado a chover; São Paulo resplandecia. Acordamos silenciosos, nos olhamos por um longo tempo, mas em variações de tempo invertidas. De modo que nos olhamos sem nos olharmos, como nos filmes sobre a burguesia italiana do pós-guerra. É preciso fé para abrir os olhos, ela disse enquanto estalava as costelas e eu comia um resto de ovo de páscoa. Na rua chovia, era um belo dia de sol. Andamos por uma avenida gigantesca, mas eu até esqueci o nome dela. Um banho por ora, depois morrer um pouco. Por ora um abraço, me avisa mais tarde. Andamos apartados e nos olhamos depois de metros, no mesmo instante. Um dia bom para filmes. Fui ao museu. Ela comeu bacalhau. Chegou a noite e me deprimi. Era importante suportar alguma violência em toda aquela notícia súbita de que estávamos na história das coincidências fotográficas. Pensamos que aquilo era apenas um bom presságio. Cruzei os dedos enquanto me afastava. Atravessou a cidade a pé.

FRISSON – SP – (5)

Deu-me o diário de Maria Gabriela Llansol. O rastro do êxodo. Boa ideia para um título. Frase para poema: perdi meu chafariz na tua fonte sem sombra.

FRISSON – SP – (6)

Acordamos exaustos e famintos, talvez com algum receio de termos gastado precocemente o nosso contato. Comemos numa padaria cheia e cara, mas muito bonita, apesar de parecer irreal. Ela pediu dois cafés expressos e dois pães de queijo. Normalmente não gosto de ver as pessoas comendo. Observei o ambiente. Ela terminou de comer e foi ao banheiro. Uma família italiana se aproximou. Um garoto com as têmporas suadas apoiou-se no balcão e gritou para que uma velha italiana típica sentasse ao meu lado. Creio que usou inclusive a expressão mamma ou nonna, o que, confesso, emocionou-me. Ela voltou e pareceu espantada por eu não ter cuidado do seu lugar. Impossível, eu disse. É uma mamma ou nonna italiana legítima. A mulher do caixa riu muito conosco, de nós. Não me lembro se ela me deu a mão ou o braço e saímos rápido, mas acho que sim. No caminho, entramos sem querer no meio de uma procissão judaica. Havia um velho com uma perna da calça maior do que a outra e um terno que lhe cobria os braços. Um personagem do expressionismo alemão, e resolvemos segui-lo, enquanto ele desceu uma galeria que vendia roupas em geral muito feias e, em sua maioria, femininas. Ficamos desapontados quando descobrimos que ele queria apenas ir ao banheiro. Lembrei da senhora na esquina das Oficinas MC e ri por dentro.

FRISSON – SP – (7)

Apontei algumas fachadas horrorosas de edifícios no intuito explícito de deixar claro: venho para viver. Mas velada havia uma vontade quase súplice de que ela virasse de repente, dada a feiura desoladora daquelas fachadas, e dissesse: podemos achar um lugar mais bonito para nós. Não devemos velar tanto, concluí, ou devemos ao menos velar tudo. Uma fachada em especial, no centro pobre, me chamou atenção. De massa cinzenta, como um velho fumante, toda pichada, lembrava ternamente meu próprio coração, arrasado mas, pelo menos, de longo uso. Com relação a este edifício, você chegou a erguer a cabeça no que pensei “Grécia, Florença?”, mas limitou-se a sorrir. Tive a impressão de que um sorriso seria um bom espaço para se viver dentro dele. Pensei em seguida: com um lenço amarelo, de seda algodão viscose, preso a um prego naquela varanda, seria possível quem sabe ser feliz, ou pelo menos alegre.

FRISSON – SP – (8)

Ao deitarmos na mesma cama fiquei inquieto com dois sentimentos complementares, inimigos: sofrimento e esperança. Tocar ali era matar a esperança, e a esperança, ao contrário, era pela morte do sofrimento. De todo modo, fui inábil, falei demais, bebi. A esperança queria ganhar de qualquer jeito e por isso fez acordo com o sofrimento. Pegamos no sono de mãos dadas, acho que ela chegou a se deitar no meu peito. Posso ter sonhado. Seria um milagre. Mesmo assim não morremos, éramos já outros. Acordamos curiosos e assustados em saber quem éramos agora. Com o correr do dia, aceitamos nossos novos outros como se aceita um tio inconveniente que chega para se hospedar em nossa casa. Apesar de tudo, é um parente. Havia já a casa, mas lá estava também o tio.

FRISSON – SP – (9)

Ganho dela três livros:
um Pavese
um Andreiev
uma Llansol

Sinto como se eu fosse Andreiev, ela Llansol (porque no livro havia ainda por cima suas anotações, inclusive cortes de alguns trechos do original, com retoques, insights, teoremas) e Pavese fosse o filho da nossa fricção matizada por uma cor ainda inexistente. Um bebê fraquinho, sem leite, mas cheio de talento e reprovação. Ponho na cabeça que preciso começar por Llansol. É tudo muito agradável, mas terminal. Ela cita João da Cruz, Hadewijch da Antuérpia, Müntzer e o Mestre da Culpa. Imagino feições estranhas e fantasmagóricas para suas imagens. Concluo que Llansol não me faz bem. Uma forma também de ter essa mulher de cujo ventre saiu meu Pavese, nostro piccolo cesare. é gostando deste livro. Repito cem vezes para meu coração: eu gosto deste livro. Com a repetição, aceito: eu tenho essa mulher.

FRISSON – SP – (10)

Talvez eu não saiba mesmo explicar, leoa, porque me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese. Sua carta contra os fofoqueiros, sua serena superioridade, sua privilegiada ausência de tudo. Talvez eu não saiba mesmo explicar e por isso talvez eu saiba que deveria de alguma forma estar aqui para poder tentar te explicar porque me incomoda tanto o suicídio (com soníferos!) de Cesare Pavese e mesmo assim olhando para o chão enquanto você que é sua imagem livre de mim finalmente apresenta os olhos imensos vitrais de igreja gótica e sua boca roxa de uma noite de vinho e os cabelos que você disse meu irmão não admite que eu pinte de outra cor que não seja loiro mas loiro resseca o cabelo e dá muito trabalho é preciso ir ao cabeleireiro e eu detesto cabeleireiros você viu só aquele casal a menina sentou e pediu que o menino esperasse enquanto ela pintava as unhas da mão você já viu alguma coisa parecida? Eu disse não mas eu diria qualquer coisa porque o acontecimento de uma imagem fere a face de deus e glorifica o homem então eu tentei fazer uma omelete dos ovos sobre os quais pisávamos tentando segurar nas pontas dos dedos as nossas frágeis expectativas e fiquei feliz porque ela era menor do que eu imaginava e me senti mais confiante porque ela comentou é bom ver a pessoa ao vivo porque existem detalhes que aumentam a gama de possibilidades de mistério de uma pessoa já que nos detalhes às vezes quase imperceptíveis do rosto estão as fugas e encontros com fantasmas que nos fazem chorar sem mesmo fechar os olhos e apertamos tenho certeza o coração ao sabermos a tragédia da vida e como bebemos e como andamos estupefatos acachapados com as chances de destruição e anulação de que somos todos capazes e não existe talvez vida em equipe amor sem etapas é preciso muito sentimento para rompermos a couraça, leoa, e muito mais cafuné para não pensarmos serão necessários quantos soníferos ou cartas pirateadas de ilhas longínquas para interrompermos essa gagueira ensandecida que nos une e em nosso sofrimento talvez possamos compreender o nosso nobre laço eu não posso aceitar infelizmente ou falar sobre os motivos pelos quais me incomoda tanto o suicídio de Cesare Pavese sua desistência histórica seu charme kamikaze e talvez eu nunca consiga e faça algumas vezes o papel de vitima do inominável mas oh cigana podemos falar o que quisermos e andarmos quilômetros quase em silêncio ou de braços dados porque não me importo em te oferecer o braço como se fosse a mulher protegida do casal. Importante controlar os ânimos.

FRISSON - SP - (11)

Cheguei e fizemos fora do combinado. Disse para meu coração: amém. Uma coceira pelo corpo me fez não querer esperar mais nada. Saí, impressionado com como havia batido forte a porta. Talvez Julia tenha acordado. Seria bom se acordasse a tempo. Não aconteceu. Saí. Você me mandou uma mensagem dizendo onde devo encontrá-lo? Respondi apenas só conheço onde fica o MASP, estarei ali no laguinho. Peguei no sono forçadamente, como quem espera um dilúvio sem teto. Gostei de estar desamparado. Adormeci imediatamente, como quem ouve o câncer. Em minutos, no entanto, em sobrevida, despertei num salto. Havia ao meu lado uma reunião de mendigos muito elegantes em torno de uma lata que fazia fogo. Conversavam animadamente, mas com semblantes sérios, o que me pareceu algo raro e incrível. Fiquei feliz que minha presença não os tenha incomodado, senti como se me oferecessem com os olhos uma ponta de cigarro. Aceitei mentalmente, e me afastei para o outro laguinho. Pensei o que você acharia quando me visse junto aos mendigos elegantes que riem falando sério. Pensei em Nietzsche, senti-me aliviado. Pobre Nietzsche, não teve a mesma sorte. Finalmente, na horizontal, vi você atravessando a rua. Fingi estar dormindo, mas, sem os mendigos em volta, a cena não fazia mais sentido. Senti-me excluído do convívio dos risos sérios. Você parecia apressada, sorria como um dos mendigos elegantes, seriamente. Senti-me excluído ao quadrado. Por isso voltei a dormir. Assim que me levantei, pretendi estar desnorteado. Uma infantilidade e uma limitação voluntárias. Queria pretender (ou seja, fazer ser o que não é) aquilo que já era. Assim que você chegou minhas palavras me pareceram ser eu estava fingindo que estava dormindo. Por que fiz isso, nunca saberei. Demoramos uma tarde para darmos finalmente as mãos. Na hora do sono, tive pesadelos. Você me deu a mão outra vez. Sua mão era mais quente que a minha e suava enquanto você dormia. Imaginei que tínhamos vários corações dentro do corpo, um deles na mão. Depois dormi melhor. Você dormiu de bruços e de lado, e disse que sonhou com pessoas cujos rostos iam ficando gradativamente pretos, até desaparecerem. Eu disse que deveria ter algo a ver com os sonhos do Kafka, que você estava lendo. Parecia a voz de uma outra pessoa que disse isso por mim. Discutimos por causa do pão e do queijo. Tive um prenúncio de forte amizade, com chuvas.

FRISSON – SP – (12)

No bar, choramos em muito pouco tempo. O que se dá nisso é que o corpo junta-se finalmente com a emoção e não se aguenta. E quando o corpo não se aguenta, é a primeira vez que vemos o corpo. Espantados com nossas graves diferenças (eu ando em linha reta até a beleza arruinando-a ou ao menos devendo-a em sangue - você contorna a beleza de modo a mantê-la intacta em seu mistério / eu dionísio - você apolo / você olhos grandes - eu pequeninos / narizes idem) planejamos intimamente uma guilhotina onde pudéssemos descansar por minutos as nossas cabeças.

FRISSON – SP – (13)

Sentamos numa praça, observando as pessoas em volta. Uma família espanhola, aparentemente mãe/avó/filhinho, estava à nossa frente, brincando com bonecos de super-heróis. Ficamos calados, como se nossos barulhos, inclusive os estomacais, pudessem afetar negativamente o desempenho dos atores. O filhinho distribuiu três bonecos. A avó seria o Batman, a mãe o Super-Homem, ele próprio o Homem-Aranha. Voavam com os bonecos como se fosse a nós perfeitamente plausível manter asas. Num dado momento, lutaram. A mãe disse ao filhinho hay que luchar, ao que ele respondeu em automatismo de coisa bruta luchar para que? Todos ficaram mudos e creio que nos olhamos, o menino inclusive virou-se para você. Tinha um rosto de mil anos. Não estamos, nós adultos, preparados para responder perguntas de crianças. As perguntas que fomos quando crianças tornaram-se nossa pele vaga, porque já não se fazem mais as perguntas às quais não é possível responder. A mãe começou a voar com seu boneco, o que deixou o filhinho pasmo, excitadíssimo. Na hora acrescentei que, se fôssemos namorados, estaríamos nos beijando, ou fazendo pequenos carinhos, e perderíamos a cena. Você concordou apenas depois, quando entendeu o que eu quis dizer. Por enquanto estamos soltos mas ainda não livres. Isto foi incluído posteriormente. Viver quase a sós atrai, pouco a pouco, os absolutamente sós. Isto também. Mantivemos um pouco mais de silêncio, como quem tira a roupa das horas. Pensei se estávamos realmente ali. Acho que sim, você disse sem mexer a boca.

jaz(z)

(para ler ouvindo http://www.youtube.com/watch?v=f1xe7FDsQWY).


anos 50:

o amor nascia
em preto & branco
num cumprimento de chapéu
um aperto de mãos
selavam os laços

as luvas da vovó eram descobertas

 
anos 70:

o amor crescia
nos jardins cabelos
revoltos do papai
rebeldia a flor da pele

queima o sutien da mamãe

 é como os seus seios
- livre

 
anos 00:

jaz o amor

nada é eterno
o fax retratos tratados
celulares  células john coltrane
a única eternidade é a ausência
o sopro do sax

seria muito mais fácil
se eu tivesse conhecido
o amor nos tempos de vovó.