sexta-feira, 30 de março de 2012

A língua portuguesa, as palavras, neologismos, Ramones - e outras jóias raras.

Caminhando, agente escreve uma linha da nossa vida. Costura um caminho. E se, as órbitas estiverem alinhadas e os deuses ao seu favor, uma ou outra coisa nova surgirá: no estalar dos dedos, no estrelar dos dados. Notícias de última hora surgirão nos telejornais. Uma prova discursiva com consulta com todas as respostas dadas no ano letivo. Uma prova de fogo entre a maturidade que chega carregada até os dentes de intelectualidade e a antiga fórmula de saber chorar como criança na hora certa. Assim, dessa maneira, com as bolsas repousadas nas cadeiras de um café-bar, as cervejas sendo servidas e o chá - muito obrigado meninos, mas hoje eu ficarei devendo a cerveja - que nós (Braino e eu) e Ramones trocamos várias figurinhas novas naquela noite de segunda. Coisas de moleques travessos dos subúrbios. Meninos venenos das balbúrdias.

É legal quando, meio sem querer, você acerta o que o outro está ouvindo no celular. Qual é a música que te (loco)move? Que filme te faz chorar hoje em dia? Qual é o livro que tira o seu sono? Ramones, poeta porreta de mão cheia, com sua amável generosidade, foi precioso quando nos entregou de bandeja um manual da língua portuguesa escrito por José Eduardo Agualusa. Um "aprenda tudo sobre a língua portuguesa em 231 páginas".
O escritor angolano e o seu "milagrário pessoal", nome do livro doado para nós, lançado pela editora Língua Geral, serviram-me de aulão, preparatório intensivo para que eu pudesse me familiarizar com os primeiros passos de letrista (pessoa formada em letras é o quê?)

Eu, que nunca tive formação acadêmica, apenas convivo num ato de não-comunhão com os tediosos estudos da belle époque do meu ensino médio. Estive em poucas universidades e nunca entrei em cursos "o olho da cara" para ser um escritor, romancista, poeta, cronista ou qualquer outra figura folclórica da literatura. As minhas melhores lições e a minha maior ambição foram todas teorizadas por Braino, durante noites e dias a fio com muita ideia na cabeça e pouco dinheiro no bolso. E sempre foi assim. Desde o tempo de zigoto, acredito no Braino muito mais do que em mim. Logo, ser como ele é uma coisa além da imagem.

Gosto do gosto das palavras. Sempre as comi muito bem. Umas poucas vezes regurgitei algumas. Uma boa parte eu já experimentei. E então, dar de cara com um prato cheio desses, um romance muito interessante a respeito do mistério da origem da língua portuguesa e a sua ligação com os cantos dos pássaros, com algumas referências explícitas da inspiração e da cultura brasileira, mais precisamente do nordeste pernambucano de Olinda, e a sua característica regionalidade, cultural e artística, a poetas e artistas de rua. Caçadores de palavras que estão sempre inventando e descobrindo novos neologismos. O Pacman de carne e osso atrás de suas moedas. Fiquei empanturrado. Satisfeito sim, saciável não. Não há remédio que cure essa fome. Fome de tudo.

Trecho do livro:

"Assim como nós criamos as línguas, também as línguas nos criam nós. Mesmo que não o façamos de forma deliberada, todos tendemos a selecionar palavras que utilizamos com maior frequência, e esse uso forma-nos e deforma-nos, no corpo e no espírito. Um carroceiro, que os dicionários definem quer como aquele que conduz carroças, quer como aquele que se comporta de forma grosseira, adquire pouco a pouco a natureza áspera os tabuísmos que utiliza. Tabuísmo, poupo-vos por esta vez a consulta ao dicionário, é como chamamos às palavras e locuções consideradas chulas ou demasiado agressivas. Palavrões. Um político ganha com o tempo o aspecto esquivo, cinzento, pouco confiável, de vocábulos como constitucionalmente, compromisso, fraturante etc. (longo bocejo). Os palhaços usam, ou deixam-se usar, por palavras largas e coloridas (a prosódia é intolerável). Os militares - como os rappers - preferem monossílabos, acrónimos, termos sólidos e duros, como guerra, de origem germânica, quase um berro, com aqueles dois erres espinhosos que arranham a garganta.
podemos alargar esta tese para as diferentes nações. Claro que quanto mais ampla for a generalização maior o risco de errar. Feito o aviso, não custa atribuir a obstinada melancolia dos portugueses ao uso degradado da palavra saudade, no fado, na poesia, no discurso dos filósofos e políticos. Seria interessante estudar o quanto o culto à saudade contrariou, vem contrariando, o esforço para desenvolver Portugal. Já a famosa arrogância e o otimismo dos angolanos poderiam dever-se à insistência em termos como bué ("Angola kuia bué!"), futuro, esperança ou vitória. No que respeita à alegria dos brasileiros, poderíamos talvez imputá-la a duas ou três palavras fortes que acompanham desde há muito a construção e o crescimento do país: mulato/mulata, bunda, carnaval."



E se não fossem esses sabores eu não sei o que seria da vida.