sábado, 19 de fevereiro de 2011

Assassinato imediato de primeiro grau




Eram quase quatro horas da manha. Era uma hora da madrugada silenciosa. Faziam mais de três horas que eu tentava dormir, em vão.
Eu olhei para o relógio ou o relógio olhou para mim. Sei lá. Ele me apontava os ponteiros. Chegava a hora do juízo final ou o final do meu juízo.
Onde eu estava até aquele momento?
Digo momento e sinto o momento vindo à memória. Ele tem um gosto. Momento tem gosto de menta. Mentira que os outros nos contam. Vem na mente o sabor do agora. Arde. Memória tem um sabor mais doce. É o momento de antigamente.
Estou tomando cerveja com Deus, ou era o Diabo, sei lá, os dois são bem parecidos quando os olhamos de perto.
Deus e o diabo na terra do samba! Carnaval! A festa do menino morto. Que menino? Não sei, só consigo enxergar o sangue na parede. Sangue tem gosto de ferro, barra enferrujada, barra de chocolate na face, gosto de morte.
Apostei com o Diabo! Enquanto Deus ria de mim
- eu não quero a tua alma.
Eu digo:
- calma alma minha, você ainda vai se arrepender.
Ele queria minha cabeça em uma bandeja de prata. Batucada de bamba. Caipirinha com o álcool dos deuses.
Todos nós rimos. Menos eu. O outro eu. O que está deitado na cama, morto.
Eu conseguia sentir o cheiro de morte. É parecido com o cheiro da vida. A vida fede. Fatídica. Fatal. Female Fatale. A morte é a vida Severina. Serena às vezes severa. Você sabia que a cor da morte não é escura? a morte não é negra,pelo o contrario ela é clara, clara demais que chega a doer os olhos!
E essas cores? Cores de Almodovar. Estou em um quadro de Salvador Dali. Dali ninguém me salva. As cores desenhavam a cena do crime.
A lua iluminava a minha consciência. Ela já havia testemunhado tudo. O quarto todo presenciou o crime.
Eu tentei dormir, mas não consegui. Eu só conseguia ficar acordado. Atordoado. Algemado pelos os olhos arregalados.
Acho que foi a feijoada antes de dormir. Era carnaval. Carros alegóricos expressionistas. Passistas desfilavam com fantasias místicas. Filavam a sobremesa,que é sempre o pior. É pior porque não me deixa dormir. Maldito doce! Bem que a minha vó me disse para não comer doces antes de dormir. Isso se você pretende justamente ir dormir.
Acontece que o assassino mora ao lado, quer dizer, mora dentro, dentro da gente. E a vítima estava ali ao meu lado na cama, no lado escuro do quarto. Encarei-o até o reconhecer .
Por mil deuses endiabrados! aquele era eu!
Como assim eu? Tu sim! Eu não! Então quem foi?
Foi o eu!
O eu roubou doces na casa de João e Maria!
Quantos eus estavam lá para me incriminar? Eu sei lá ! você enlouqueceu? Eu vejo nesta palavra um eu que não se percebe. Por que logo eu?! o gato comeu! cadê o gato? Foi embora e só deixou o sorriso...
Estávamos todos ali reunidos. Eus que eu nunca havia visto na vida. Eu vestido de santo, eu vestido de guerreiro, tinha até um eu vestido de mulher. Todos esses eus que nos habitam. Inquilinos do nosso próprio corpo.
E como eu vou saber que eu matou eu?
- o eu ditador morreu! Vida longa os eus!
Gritou eu revolucionário.
Todos olhavam para mim e me acusavam com os meus próprios olhos. Como foi que aconteceu? Olha outro eu aparecendo por ai.
Subi no Magic bus e decidi voar de volta no túnel do tempo. O vento batia no meu rosto e marcava a minha testa com lembranças com cheiro de mofo. Mas era bom. O mofo traz saudade, saudade que tem gosto de sal, o sal de Hades.
Enquanto isso, aproveitei para passar o dedo no arco-íris que tem gosto doce, esse doce que não me deixa dormir.
Cupidos cagavam na minha cabeça. Merdas de cupidos são as piores, pois mancham a dignidade do homem.
Acordo em um lugar escuro. Silêncio. Canção de todo o mundo. Do mudo. Batida cardíaca. Som de útero materno. Iluminou-me a barriga saber que desde a época em que eu dormia no ventre de minha mãe, eu carregava em meu ventre, bem no meio, no centro do corpo. O umbigo que é o centro do meu universo. Ele e eu nascemos, onde nascem todas as coisas, inclusive o amor.
Ele-eu crescemos no meu corpo e éramos bem parecidos. Dividimos os mesmos braços, pernas, olhos e até os mesmos pensamentos. Dividimos a mesma cabeça sobre o mesmo teto capilar. Tivemos crises existenciais como qualquer pessoa normal que sofre de dupla personalidade.
O problema maior veio quando passamos a dividir o mesmo amor platônico.
Já dizia o Espírito Santo: - Dois é bom mas três é demais.
Ele queria ela só para eu. E eu também. E como dois eus não se beijam, começamos uma discussão:
Tudo começou com um tapa. Um tapinha. De leve antes do doce.
Ele me acusou de ter roubado o parabéns que ela havia lhe dado. Eu o acusei de ter sido autoritário. Eu me disse que eu não poderia nunca amar uma pessoa que existe. E eu o acusei de eu ter perdido os momentos da minha vida em que eu poderia ter morrido em paz. Morrido de rir. Morrido de alegria.
E foi assim que eu comi o doce. O doce envenenado. Ele ainda gritou:
- Eu voltarei!!
Mas já era tarde. Tarde pra caramba!
Estávamos apenas nós dois. Só eu. O outro eu estava morto. E eu estava livre. Não era mais eu. Éramos nós! um coletivo de eus.
- Livre!!
Livre para conversar com qualquer música! livre para pintar o mundo com os meus próprios olhos. E livre para mastigar os meus textos amargos no âmago do papel. Passe a língua em cada palavra minha e acreditem, a maiorias delas tem sabor de melancia.
Assassinei o meu ego. Que alívio. Tirei os pregos que me grudavam na cruz. Tirei o peso do mundo. Eu era o mundo!
Eu sou Deus! ou o diabo, sei lá, nós três somos bem parecidos quando somos olhados de perto.
Respirando um novo ar. Acordado em um novo acorde. Deitado no ventre do mundo. Com cores. Sem dores. Um mundo para mim e para ela. Um mundo paralelo. Para Hêlo.
Peguei carona no submarino amarelo. Mergulhei na onda. Onde? viagem ao centro de mim.
Acreditem, isso não é morrer, é renascer!