segunda-feira, 27 de agosto de 2012

amada poética pictórica

Novos rumos que se abrem no meu horizonte. E eu me permito caminhar sem restrições para qualquer campo que me leve ao contato de novas possibilidades de vida. Quero dizer, novas possibilidades de inventar vidas. Meu desgosto pela atuação em nada impede o meu desejo por outras vidas. Na verdade, até prefiro a expressão "pintar outras vidas". Sim, pintar é sempre mais bonito e hermético. Há sempre algo que foge às palavras. Digo, antecede-as. A pintura existe para que se possa sentir, antes de tudo, em contornos e detalhes físicos a cor e a textura da poesia. As palavras só consegue ser um vestido para um baile de carnaval. Na verdade, existe a co-relação no processo criativo entre a pintura e a literatura que está além da estética: o mecanismo de criação parte do mesmo princípio de distorção da realidade, mas na literatura as palavras não atingem, por maior que seja o campo léxico da linguagem, as mesmas variações de "roupagem" que a pintura com as suas tinturas (a)tingem.

Desde que comecei a dar os meus primeiros passinhos nas páginas em branco, pressinto essa relação pintor/escritor. Palavras que colorem e borram no papel. Tinta e tela por onde escorrem as palavras. A minha busca literária, desde o tempo mais primórdio, sempre esbarrou com as figuras abstratas e as mensagens pictóricas que há por aí. Vide de exemplo este, que foi um dos meus primeiros poemas DuasCaras, um poema pintado no auge das minhas criações juvenis: Real.

"mais uma vez
bebeu até soluçar
um soneto doido

e sentiu-se esvaziar
como um pula-pula
bóias de crianças no

final da tarde, um
jogador lágrimas
após o espetáculo

e quebrou os dedos
depois como quem
assina uma obra-prima."


E os poemas, com o passar dos tempos, adquiriram outras formas. Engordaram mais, os meninos. Talvez, envelheceram muito, como diria meu clone grilo falante. Mas a vontade de continuar pintando permaneceu entranhada em algum canto perdido do meu inconsciente. E eu acabei por redescobri-lo após terminar de ler o livro "Cartas sobre Cézanne" do poeta alemão Rainer Maria Rilke - com tradução e prefácio de Pedro Süssekind, lançado em 1995 pela 7L (Sette letras) - sobre o pintor francês pré-impressionista e pré-pós-impressionista cujo título de "pai de todos os modernistas" recebeu de outros pintores à posteriori, como os próprios impressionistas, os cubistas e os surrealistas.

No prefácio escrito por Pedro Süssekind, intitulado "pintura nos olhos do poeta", dá para se ter a noção da incapacidade literária de se traduzir em palavras a poesia pintada. E o quanto pode ser associável o próprio entendimento de arte, e sua crítica, com o entendimento da pintura:

"'Quase não faz sentido falar sobre arte... ' - escreveu Cézanne, acrescentando em seguida a explicação: 'o homem de letras exprime-se por abstrações, ao passo que o pintor, por meio de um desenho ou da cor, dá forma concreta às suas sensações e percepções'.
Estas frases não revelam apenas aversão de um artista aos críticos de sua época. Mais do que isto, elas apontam a dificuldade em que se esbarram os textos sobre arte, sem nunca conseguirem livrar-se dela completamente. Por um lado, corre-se o risco de passar ao largo do tema, articulando informações e comentários que pouco têm a ver como sentido de trabalho artístico. Por outro, quando se procura esclarecer tal sentido de um ponto de vista histórico, social e psicológico do artista. As abstrações da escrita não alcançam o que se mostra concretamente na obra (para usar a oposição feita por Cézanne). Ou: algo da pintura permanece inacessível às palavras, incapazes de dizer o que só se oferece o olhar."


O livro é um apanhado de cartas em sequência de dias do R. M. R. em Paris para sua amada Clara Westhoff, a escultora com quem ele foi casado e, após o deslaço da união de bens entre eles, buscava viajando um lugar adequado para concluir uma monografia sobre Aguste Rodin. Lá, ele se depara com uma exposição de Cézanne, o velho rabugento, esquecido, atordoado por moleques e atacado com pedras, o louco, que se recusa a sair de seu ateliê para nunca deixar de trabalhar. Um homem que morreu e se imortalizou por seus trabalhos. E que R. M. R. buscou e tentou se inspirar ao escrever "O livro das horas".

" (...) Teria aprendido muito pouco, naquela época, diante de Cézanne e Van Gogh. Por isso, por Cézanne ter tanto a ver comigo agora, noto como me tornei diferente. Estou no caminho de me tornar um trabalhador, em um longo caminho talvez, e provavelmente só nas primeiras milhas; mas, apesar disto, já posso compreender o velho homem que foi a algum lugar distante, lá na frente, sozinho, seguido apenas pelas crianças que lhe atiravam pedras (como descrevi certa vez no Framento dos solitários*). Hoje estive de novo olhando seus quadros; é notável o ambiente que produzem. Sem considerar nenhum isoladamente, ficando em pé bem no meio, entre as duas salas, sentimos sua presença reunindo-se em uma realidade colossal. Como se estas cores nos livrassem de uma vez por todas da indecisão. A boa consciência deste vermelho, deste azul, sua veracidade simples nos esduca; e se nos colocamos da maneira mais disponêvel diante delas, é como se fizessem algo por nós (...)"

O poder das pinturas de Cézanne fascina tanto R. M. R. ao ponto dele voltar diariamente para o salon onde o francês expôs só para tentar traduzir para a amada as sensações da poética pictórica que ele sentiu ao ver as impressões pouco realistas e a liberdade com que Cézanne as reproduzia. Numa maneira tão paralítica e obervadora quanto "um cão à obervar, sem estar nervoso e sem segundas inteções", segundo Mathilde Vollmoeler.

Pois bem, e é justamente por falta de palavras que eu vou me despedindo de todos deixando aqui a minha declaração entusiasmada respeito da minha queda para as tintas à óleo, as tela, pincéis, paletas etc... é que eu estou namorando a poética pictórica.

*livro não publicado


(autoportrait Cézanne)


(Vasilhas, cestas e frutas - Musée D'Orsay, Paris, França)